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25 Mar 2014
A 31ª Bienal como jornada
Relato de Andamento, 25 de março de 2014. Os percursos, ideias, conflitos e transformações que pontuam a jornada dos participantes da exposição.

Talvez a melhor maneira para entender a situação corrente da 31a Bienal de São Paulo é pensá-la como uma jornada. O caminho que a equipe da Bienal seguiu percorre ruas, pátios e becos sem saída bem trilhados e envolve algumas bagagens perdidas e encontradas, bem como muitas ideias novas surgidas no percurso. Claro que esta jornada não se encontra ainda em seu final – que ocorrerá somente em dezembro de 2014 – mas esta ideia de percurso é uma ideia que gostaríamos de oferecer aos que visitarem a Bienal a partir do dia 6 de setembro. Haverá muitas oportunidades para se entender a natureza das jornadas, conformadas por densidades de diferentes obras de arte que resultam em um itinerário em torno de uma ideia comum. Haverá conflitos, descobertas e transformações ao longo de projetos desenvolvidos pelos participantes, às vezes em colaboração com outros.

Desde o início quisemos trabalhar juntos como uma espécie de corpo coletivo e, embora levasse tempo para ser estruturada, acreditamos que esta é uma metodologia mais sintonizada com nossa precária contemporaneidade (como podemos ver nas praças ou ruas por toda parte). O dispositivo da jornada é uma tentativa de olhar para o mundo e sua arte da perspectiva de São Paulo, partindo daqui para o mundo. Tateantes, percebemos, não só aqui mas em diferentes sociedades do mundo inteiro, que as pessoas estão suspensas em um equilíbrio entre a esperança de que possibilidades sociais novas e concebíveis podem estar se abrindo diante delas e o temor de que não possa haver nenhuma mudança no sistema global corrente fora de suas regras e controles existentes. Os projetos que convidamos para a Bienal, em seus distintos modos, parecem-nos tratar essa ambiguidade na sociedade e sugerir maneiras pelas quais poderíamos falar sobre ela, aprender com ela, lutar contra ela ou usá-la para ajudar a moldar nosso futuro (também cultural).

Jornadas

A jornada começou em pelo menos três direções muito distintas. Uma delas foi a do mergulho na história da Bienal de São Paulo e do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, onde a exposição tem sido sediada desde 1957. Outra foi para viajar pelo Brasil e pela presente situação de seu cenário artístico, cultural e político, considerando-o em relação intensa com um contexto latinoamericano mais amplo. A terceira foi o envolvimento em um diálogo e intercâmbio com as equipes permanentes da Bienal, seus apoiadores e o mundo mais amplo à nossa volta.

Nossas ações iniciais foram as de organizar “encontros abertos” pelo Brasil afora em colaboração com instituições e profissionais locais. Os encontros em cidades como Porto Alegre, no sul, Fortaleza, Recife e Salvador, no nordeste, Belo Horizonte e São Paulo, no sudeste, e Belém, no norte, e que ainda acontecerão em outras cidades, permitiram-nos configurar uma situação de intercâmbio por meio da qual conhecer as perspectivas, interesses, preocupações e urgências artísticas locais. Tocamos nas questões da arte e sua relação com a vida nas cidades; falamos sobre educação e infraestrutura cultural, dinâmica social local e lutas políticas correntes, entre muitas outras questões. Todas essas informações foram fundamentais para o modo como nossa curadoria se desenvolveu. Os encontros, além de iniciar relações que depois continuaram, revelaram que a cena artística no Brasil está amplamente consolidada, embora de modo muito diferente de cidade para cidade e de região para região, e que a comunicação entre localidades nem sempre é necessariamente igual ou satisfatória.

Pudemos também observar diferenças no tipo de trabalho efetuado nas diferentes cidades, dependendo muitas vezes da presença ou ausência de uma infraestrutura e mercado artístico em funcionamento, bem como as diferentes relações que a arte estabelece com o contexto cultural, social e político mais amplo. Viajando pelo Brasil e outros países das Américas do Sul e Central, o movimento de pessoas, seu deslocamento e reassentamento se tornaram uma preocupação maior – do direito ao transporte público gratuito, ou mesmo a preços acessíveis, até a experiência de migração e a invisibilidade social de grupos nômades, bem como as tentativas de estabelecer interlocução com povos indígenas.

Ao mesmo tempo que esta viagem geográfica, começamos a analisar como o pavilhão da Bienal em si – um dos símbolos icônicos do evento – foi usado no passado. Nossos estudos de projetos das bienais anteriores e do próprio edifício revelaram qualidades arquitetônicas únicas e diversas que podem ser utilizadas para produzir diferentes tipos de encontro com obras de arte e a ideia de arte. Tentaremos tirar partido dessas características no modo como obras e projetos são exibidos para enfatizar o ato corporal ou físico de estar em um evento da Bienal e o poder transformador que ele contém para aqueles que estão no espaço. Isto significará alocar funções diferentes para espaços diferentes, sem tratar o pavilhão apenas como recipiente para a arte, mas como espaço para seus 500.000 visitantes previstos, suas necessidades e confortos.

Essas jornadas, pelo Brasil e para dentro do edifício, começaram a informar o que pensamos que poderia ser relevante ou apropriado para o evento. Um dos primeiros artistas a fazer sentido para nós foi Prabhakar Pachpute. Sua habilidade para criar imagens que comunicam com uma intensidade orgânica nos levou a convidá-lo para participar no projeto da identidade visual da 31ª Bienal – um processo de quatro meses com a equipe de design da Bienal. A imagem que escolhemos, uma forma monstruosa sem visão, caminhando de modo incerto mas com desejo determinado como um corpo coletivo, compartilhando uma inteligência comum e sensibilidade expandida, transmite as quatro ideias que se tornaram cruciais ao nosso trabalho: imaginação, transformação, coletividade e conflito. Elas já foram a base de nosso material educativo, publicado em fevereiro como ferramentas para professores prepararem o terreno para visitas escolares à Bienal na primavera.

Imaginação e trans-

Para abordar a jornada mediante as obras de arte, recorremos a um épico viajante da arte, Juan Downey, um chileno que produziu obras pelas Américas, criando uma relação singular com as comunidades indígenas que ele encontrava, e questionando os códigos segundo os quais os indivíduos são apresentados/representados. Envolvemo-nos em uma conversa com Romy Pocztaruk, uma artista cuja exploração fotográfica da rodovia Transamazônica e da cidade abandonada de Fordlândia lançam uma nova luz sobre os territórios “esquecidos”; e com Danica Dakic, que trabalhou com comunidades na Europa a quem não são concedidas direitos ou acesso de que desfrutam os cidadãos “normais”. Também o trabalho de Armando Queiroz trata da invisibilidade e do constante desaparecimento violento de povos indígenas do Brasil.

Esses modos de existência estão diretamente relacionados ao único elemento fixo em nosso mutável título de exposição: as coisas que não existem. O título da 31a Bienal propõe várias e distintas maneiras de abordar essas coisas: Como falar sobre elas, como aprender com elas, como viver com elas, como lutar contra elas… em uma tentativa de apontar para uma das principais aptidões da arte - tornar visível o que não é visto, materializar coisas e efetivamente alterar as relações que constituem nosso mundo. As pinturas de Jo Baer, onde ela se empenha em interpretar o vendaval de pensamentos que emergem das antigas e silenciosos menires da Irlanda, tocam diretamente nisso. Val del Omar transforma as estátuas barrocas inanimadas e a arquitetura árabe em criaturas vivas cheias de uma energia e ameaça místicas (misturando mecânica, ótica e poesia). Asger Jorn também trabalha em uma direção parecida com seu projeto fotográfico dedicado ao simbolismo da escultura e arquitetura em um contexto europeu setentrional. Outros, como Sheela Gowda, Tunga e Lia Rodrigues ou Edward Krasinski, implementam uma transformação mais material que desloca a natureza do “material” para que suas propriedades obscuras, mágicas, alquímicas, possam emergir e dar margem a uma experiência que transcende as condições que habitamos.

O conceito de não existência pode igualmente ser lido como o resultado de nossa imaginação política e econômica bitolada. A maioria de nós vive em um mundo onde a ideologia dominante, o capitalismo neo-liberal, parece capaz de ignorar ou excluir de sua consciência experiências ou formas de vida inconvenientes, ou de incorporá-las de um modo que trai os princípios e a natureza das coisas numa tal medida que elas não mais retêm nada de seu caráter original. Este processo torna irreais certos tipos de emoções, crenças e contatos porque as linguagens de que necessitamos para compartilhar coisas com os outros não conseguem dar conta delas. Em algum momento pode parecer como se as próprias coisas jamais aconteceram e sua lembrança é silenciosamente deixada de lado. Chamar a atenção para coisas desarticuladas é uma das tarefas que definimos para esta Bienal, e a aptidão política da arte hoje pode em parte consistir em despertar coisas que não existem ou não podem existir no consenso corrente, e dar a elas novo valor no mundo, às vezes pelo simples reconhecimento de que elas estão ausentes. As delicadas considerações de Walid Raad sobre o desaparecimento de obras de arte tocam diretamente nesta sensação, tal como o fazem as instalações narrativas semidocumentais de Basel Abbas e Ruane Abou-Rahme em um registro diferente. Os tecidos de Teresa Lanceta são realizados após algum tempo convivendo com berberes nômades no Marrocos, permitindo a ela colocar em exibição um estilo de vida coletivo e um conhecimento comum que está desaparecendo sob a ameaça do mercado global e do turismo de massas.

A arte também pode ser uma força destruidora. Ela pode responder pela aparência e comportamento das pessoas e do mundo em sentidos que são negativos ou provocadores. A arte pode criar situações em que o desaprovado é reconhecido e valorizado. É a esta condição que chamamos trans-, abordando transgressão, transcendência, transgênero, trânsito, transsexualidade, transformação, transporte, transmissão, transtorno, entre outros. Esse atravessamento de fronteiras (uma travessia que também pode ser parte de uma jornada) pode ocorrer por mudança (de gênero) corporal literal ou estados mentais diferentes (sistemas de crença): algumas vezes, ou mesmo muitas, ocorrem juntos. Os filmes de Virginia de Medeiros, Nurit Sharett e Yael Bartana, bem como o misticismo de muitos dos artistas acima citados, captam este sentido das trans- e o colocam em ação.

Educação

Um dos efeitos das coisas trans- é que não é mais possível retornar ao original ou, dito de outra forma, não é possível colocar a tinta de volta no tubo depois que ela saiu. Trans- implica uma mudança de estado, tais como a que ocorre em contatos educacionais bem-sucedidos. Da Fundação Bienal, tivemos a oportunidade de trabalhar com uma equipe de educação que tem atuado por mais de 4 anos sob a direção de Stela Barbieri. A experiência e conhecimento dessa equipe, incluindo suas redes nas escolas, comunidades e organizações locais tem servido de base aos curadores para começar a convidar artistas que poderiam aceitar o desafio da colaboração e do trabalho coletivo. A parceria com a Residência Artística FAAP também tem permitido com que vários participantes possam permanecer durante longos períodos para vivenciar diferentes facetas de São Paulo e do Brasil. A equipe de educação está organizando os itinerários de pesquisas com estes artistas e ajudando a estruturar a criação de novos trabalhos para a Bienal à medida que os entendimentos e preocupações da equipe de São Paulo se combinam com as ideias iniciais dos artistas. Desse modo, a preparação da mediação e questões do evento sobre como se dirigir ao público e com ele intercambiar estão presentes desde o início do processo.

Uma preocupação com educação não deve ser estranha no Brasil, país com uma extensa história de educação radical e com um problema contemporâneo urgente de disseminar e melhorar o aprendizado de massa. Muitas tentativas aqui e em outras partes têm sido feitas, em grande e pequena escala, para mudar as estruturas sociais e tratar desigualdades por meio da educação, e para a 31ª Bienal convidamos vários projetos que examinam histórias educacionais experimentais para reavaliar seu potencial hoje. Pedro G. Romero está pesquisando as consequências estéticas e políticas da Escola Moderna, enquanto Imogen Stidworthy está trabalhando com o legado vivo de Fernand Deligny a partir do encontro com diversos dos seus colaboradores em Monoblet, França, e Graziela Kunsch e Lilian Kelian estão refletindo sobre o passado e o presente do sistema educacional em São Paulo e no Brasil. Todos estão propondo questões e modelos que informarão atividades ao longo da exposição. Deste modo, queremos colocar a educação e o público da 31ª Bienal – escolares, estudantes, comunidades e visitantes – no centro da ação. Além de trabalhar com artistas profundamente envolvidos com essas questões, isto significa dedicar espaço no pavilhão não só para a arte mas também para o ato de recepcionar, preparar, conversar e pensar. Felizmente, a arquitetura do edifício está pronta para tal intervenção, com um andar térreo que abre diretamente para o parque e oferece uma zona intermediária entre a natureza feita pelo homem e os compartimentos necessários para expor certos tipos de arte. Para criar essa transição, a concepção do espaço está sendo desenvolvida em colaboração com grupos de artistas com experiência e dedicação a esses assuntos, como Contrafilé e Sandi Hilal e Alessandro Petti.

Nossa preocupação com educação também opera em uma escala menor, quase íntima, com a organização de um workshop intitulado Ferramentas para organização cultural. Durante três semanas separadas ao longo de um período de 10 meses, um grupo de 17 jovens artistas, curadores, escritores e ativistas culturais selecionados por meio de uma convocatória aberta participam de discussões teóricas e práticas com a equipe curatorial e outros convidados, visando enfocar o modo de trabalhar hoje na cultura. A intenção é oferecer ferramentas que possam contribuir para a transformação dos locais e instituições onde os participantes vivem e trabalham.

Conflito e coletividade

Trabalhar juntos, horizontalmente, e trabalhar em situações de conflito parecem-nos hoje atitudes fundamentais, particularmente em um país e mundo que talvez estejam às vésperas de importante mudança social. Enquanto a divisão entre ricos e pobres aumenta dia a dia mundialmente, parece haver poucos meios de abordar isto com as ferramentas artísticas de que atualmente dispomos. Cidades e regiões estão se transformando radicalmente, mas os mecanismos de representação política oferecem poucas respostas holísticas. A velocidade e direção da jornada estão produzindo conflitos no mundo inteiro, e não é muito difícil prever uma crise de representação política, onde um clamor crescente de “não é por aí!” é acompanhado pelo desejo de se erguer juntos e coletivamente se opor a situações claramente injustas. Esta ligação íntima entre conflito e coletividade é algo que frequentemente é uma fonte de energia e inspiração para artistas. Alguns, como Ana Lira ou Halil Altindere, voltaram suas câmeras para os protestos recentes, Lira registrando o desaparecimento da imagem e slogans em cartazes políticos em Recife, Altindere trabalhando com jovens dos subúrbios de Istambul para expressar e representar sua raiva (e alegria) pela música. Em outras ocasiões, participantes fundem ideias e preocupações de suas próprias localidades com condições e pessoas que têm encontrado no Brasil. Juan Pérez Agirregoikoa reencenará o que Pier Paolo Pasolini omitiu de sua versão do Evangelho segundo São Mateus com a ajuda de atores amadores de grupos de São Paulo; Etcétera... vai propor um teatro político com a ajuda de Léon Ferrari; Yochai Avrahami toma os displays de museus históricos no Brasil como ponto de partida para uma narrativa contada por e através de objetos; Ines Doujak e John Barker estão investigando como tecidos e estampas são a base para um sistema de exploração e como poderiam funcionar, aqui, como ferramentas para a subversão de tal sistema.

Todos estes projetos, e muitos mais, serão montados no pavilhão da Bienal em uma série de densidades, algumas intensas, outras descontraídas, que contam histórias sobre coisas que não existem. Provavelmente muitas pessoas ocuparão o espaço e talvez apropriadamente criarão imagens de corpos juntos, amontoados, orgulhosos, abraçando-se ou agarrando-se, completando assim nossa jornada. Os filmes e pinturas de Leigh Orpaz e Bruno Pacheco, bem como os desenhos de Prabhakar Pachpute, podem ser imagens acuradas da provável experiência de visitar a Bienal, mas também são relevantes como um modo de considerar como aquelas coisas que não existem poderiam ser chamadas à existência. É pela atuação em comum, neste caso em torno da arte, e pelo compartilhamento de ambições e valores opostos pelo sistema dominante,¬ que poderemos juntos alcançar uma transformação rumo a um modo diferente de ver as coisas, de conversar sobre as coisas, de lutar por e contra as coisas, e transformar a nós mesmos e nossa relação com o mundo à nossa volta.

texto: equipe curatorial 31ª Bienal
imagem: Juan Downey, WAYU, 1977